segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

ABIM



Eu NÃO sou Charlie. Então, o que sou?







Alejandro Ezcurra Naón





O horrendo massacre perpetrado no dia 7 de janeiro por extremistas islâmicos contra funcionários do semanário satírico “Charlie Hebdo”, somado a dois outros atentados terroristas, causou enorme comoção e justificado repúdio mundial, a ponto de ser chamado de “11 de setembro francês”.

Rapidamente, com a agilidade e a concisão próprias do espírito francês, o jornalista Joachim Rancin sintetizou esse rechaço com três palavras: “Je suis Charlie” (Eu sou Charlie). E os franceses foram convocados a se identificarem com essa frase, exibindo-a durante as manifestações programadas em todo o país nos dias 10 e 11 de janeiro, para expressar assim seu repúdio ao crime e sua solidariedade com as vítimas.

No entanto, a frase é restritiva, porque se refere apenas a um aspecto do sucedido, além de induzir a um equívoco que oculta uma arapuca ideológica.

De fato a tragédia não se cingiu a um atentado contra “Charlie Hebdo”; foi uma sequência de três atos terroristas consecutivos, nos quais, além de dez membros do staff da revista, faleceram três policiais e quatro civis, clientes de um local de comida judaica. Portanto, a frase Eu sou Charlie tem algo de excludente — hoje se diria “discriminatório” — em relação às outras vítimas.

Ademais, há nela um equívoco, porque sugere que o repúdio a esses condenáveis atentados e a compaixão pelas suas 17 vítimas implica forçosamente identificar-se com “Charlie Hebdo”, e portanto com a linha editorial da revista. O que para um católico é simplesmente inaceitável.

Por quê? Porque em um de seus traços essenciais, “Charlie Hebdo” é afim ao extremismo islâmico.

Explicamo-nos. Os jihadistas praticam uma forma de barbárie cruenta, assassina, selvagem, para impor um estado de coisas conforme ao seu fanatismo religioso. “Charlie Hebdo” também pratica uma forma de barbárie, incruenta, mas que não deixa de ser igualmente bárbara e fanática. Consiste em pisotear todas as regras de convivência civilizada, para entregar-se a ofender, agredir, ultrajar de modo desenfreado e gratuito.

Sob o pretexto de ser uma revista satírica, seus redatores se escudam na “liberdade de expressão” para se entregarem a esse puro exercício de barbárie intelectual de inspiração ateia. É um aspecto da neobarbárie revolucionária e uma forma de estabelecer o que o Papa Bento XVI denominou “ditadura do relativismo”.

É impossível reproduzir aqui as caricaturas com as quais “Charlie Hebdo” insulta com grosseiras blasfêmias — que parecem vomitadas pelo inferno — a Igreja Católica, suas crenças e autoridades. Mas qualquer leitor que as tenha visto pode dar fé do que dizemos.

De passagem, recordemos que o pecado deliberado de blasfêmia é sempre grave, por consistir em injúria direta a Deus, aos santos e às coisas sagradas, como também por sua malícia intrínseca, ou seja, pela carga de ódio a Deus que contém.

O trato civilizado, não só no Ocidente, mas em toda civilização digna desse nome — de que o Japão, a Pérsia, a China, entre outros, deram esplêndidos exemplos —, sempre se baseou em um senso claro da dignidade humana e do respeito devido aos nossos semelhantes. Um respeito matizado, que se deve a todos, mas em medida proporcionada à dignidade de cada um.

Na civilização cristã, esse senso de dignidade e respeito alcançou um auge, gerando formas excelentes de cortesia baseadas em duas virtudes: da justiça, que manda dar a cada um o que lhe corresponde, e da caridade, que pede dar mais aos mais necessitados.

Da prática dessas virtudes floresceram formas de excelência no trato social, as quais constituíram como que o selo distintivo da cristandade europeia, cuja recordação fez Talleyrand exclamar, depois das convulsões da Revolução Francesa: “Quem não conheceu o Antigo Regime não sabe o que é a doçura de viver”

Com efeito, dessa França que foi o “Reino Cristianíssimo” e o paradigma da delicadeza de trato e da mais refinada cortesia, surge agora essa criatura intelectual neobárbara, satírica, ateia e anarquista chamada “Charlie”, para se dedicar a demolir tudo o que é sagrado, respeitável, nobre, sério. Poderíamos exclamar com o profeta das Lamentações: “Quomodo obscuratum est aurum” – Como se obscureceu o ouro! (Jeremias, IV, 1).

Por isso, ao mesmo tempo que nos unimos às orações pelas almas dos membros da equipe de “Charlie Hebdo” e das demais vítimas da barbárie assassina islâmica, invocando para eles a piedade de Deus, repudiamos também a barbárie cultural revolucionária ostentada por aquele pasquim, e em consequência declaramos categoricamente: “Eu não sou Charlie”.

E então, o que somos? Simplesmente católicos que, diante do avanço da neobarbárie contemporânea sob suas múltiplas formas, afirmamos que esta só tem uma resposta: lutar para restaurar a verdadeira civilização, que é a civilização cristã.

(*) Alejandro Ezcurra Naón e colaborador da ABIM






Fonte: Agência Boa Imprensa – (ABIM)

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